A vida de Serra no exílio
Um mergulho no dia a dia do candidato nos 14 anos que viveu fora do País durante a ditadura militar. Os momentos difíceis como professor, a perseguição pelo serviço secreto do Itamaraty enquanto lutava pela democracia e o risco de morte no golpe do ChileClaudio Dantas Sequeira FAMÍLIA:No Chile, Serra casou-se e teve dois filhos
Último presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) antes do golpe militar de 1964, o presidenciável tucano José Serra viveu 14 anos fora do Brasil, em razão da ditadura militar que se instalara no País. Logo depois do golpe de 1º de abril, ele se refugiou na embaixada da Colômbia e seguiu para a França. No ano seguinte, retornou clandestinamente para São Paulo, mas ficou poucos meses e embarcou para o Chile. Em 1973, com o golpe protagonizado pelo general Augusto Pinochet e a queda do governo de Salvador Allende, Serra foi preso e levado ao Estádio Nacional de Santiago, onde os militantes de esquerda eram executados sumariamente. Escapou com vida graças à colaboração de um major. Foi, então, para os Estados Unidos, onde morou até 1978. No Chile, Serra passou oito anos. Casou-se e teve dois filhos. Levou uma vida simples, muitas vezes dividindo casa com outros refugiados. Caso voltasse para o Brasil, seu destino seriam as masmorras da ditadura. Sustentava-se trabalhando como economista na Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), na qual chegou a lecionar e a ministrar palestras. O que se sabe agora, a partir de documentos obtidos por ISTOÉ, é que enquanto esteve no exílio José Serra desempenhou um importante papel na luta pela redemocratização do País.
Mesmo distante da resistência local, Serra chamava a atenção dos golpistas de 1964. Os documentos classificados de secretos, que estão em fase de organização no Arquivo Nacional em Brasília, mostram que o ex-líder estudantil era cotidianamente perseguido por agentes do Centro de Informações do Exterior (Ciex), o setor de inteligência do Itamaraty. Os espiões da ditadura o definiam como um dos líderes da Frente Brasileira de Informações, entidade incumbida de revelar no Exterior os crimes do regime militar. Os documentos indicam que, além do trabalho na divulgação de violações aos direitos humanos no Brasil, Serra desempenhou papel-chave na reunificação do movimento estudantil.
LONGE DE CASA: No exílio, Serra morou com amigos e deu aulas na Cepal, sem saber quando poderia voltar
Os registros secretos citando o nome de Serra são constantes entre 1969 e 1973. No informe 283, de 11 de agosto de 1971, Serra é apontado como elemento de ligação entre os brasileiros que organizavam no exílio a estratégia de propaganda contra a ditadura. Na linguagem típica da caserna, o tucano é classificado como “um dos mais ativos pombos-correios da chamada Frente Brasileira de Informações”, que denunciava no Exterior os crimes da ditadura militar. O documento do Ciex dá detalhes da movimentação do “líder estudantil”, que foi beneficiado com um passaporte expedido inadvertidamente pelo então cônsul-adjunto no Chile, Octavio Eduardo Guinle. Por causa de seu gesto, o diplomata acabou preso por 90 dias e foi pressionado a pedir exoneração.
Os informes que os diplomatas produziam sobre as atividades de Serra no Chile eram transmitidos para os serviços de informações do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Um deles despertou interesse maior, pois permitiu trazer luz à atividade de Serra para unificar o movimento estudantil, então dividido em diversas facções. Trata-se do informe 481, de 23 de dezembro de 1969. O araponga diz que Serra esteve em Montevidéu, de onde teria seguido para Cuba com o objetivo exatamente de reunificar o movimento estudantil brasileiro. “Teria estado em Montevidéu, de 14 a 16 de dezembro de 1969, procedente do Chile, o indivíduo de nome Serra, indicado como ‘líder estudantil no Brasil’, o qual teria retornado a Santiago do Chile, de onde pretenderia prosseguir viagem para Cuba, via Praga, atendendo a convocação de outros líderes estudantis que se encontram em Havana”, relatou o agente do Ciex. Procurado por ISTOÉ, Serra não quis fazer comentários sobre os relatos.
Encontro no restaurante Em 24 de maio de 1973, o agente do Ciex testemunhou um encontro de Serra com outros brasileiros exilados num restaurante chamado “Savain”, em Santiago. “À noite, se realizou um jantar de solidariedade com as atividades da Frente Brasileira de Informações, Associação Chileno-Brasileira de Solidariedade e em homenagem ao novo coordenador do Comitê de Denúncia à Repressão no Brasil, o brasileiro Francisco Whitaker Ferreira”, disse o araponga. De acordo com o documento, o jantar foi patrocinado pelos “brasileiros que trabalham nos quadros das Nações Unidas em Santiago”. Whitaker, que hoje é um dos coordenadores do Movimento Contra a Corrupção Eleitoral (MCCE), mostra-se surpreso com a espionagem de diplomatas e confirma a realização de diversos encontros com Serra e outros exilados. “Nossa preocupação era ajudar as pessoas que estavam sofrendo algum tipo de perseguição. O princípio era divulgar imediatamente no Exterior qualquer prisão que ocorresse no Brasil, para evitarmos desaparecimentos e torturas”, conta.
Whitaker, que também é mencionado em dezenas de informes do Ciex, lembra que outra preocupação de Serra era apontar os equívocos da política econômica do regime militar. Nessa tarefa, ele uniu-se na Cepal aos economistas Aníbal Pinto e Maria da Conceição Tavares, hoje ligada ao PT. “Lembro do artigo que Serra publicou com a Conceição chamado ‘Além da Estagnação’, que se tornou uma referência na análise econômica”, diz Whitaker. Serra se destacou tanto que substituiu Conceição como assessor do governo de Salvador Allende. Outro informe sobre as críticas na seara econômica, com data de 7 de junho de 1973, fala de sua passagem por Córdoba, na Argentina, para assistir a uma reunião do chamado Movimento de Integração Latino-Americana. Segundo o relatório, “entre os temas a serem tratados estão a oposição ao empreendimento da usina de Itaipu e à cooperação Brasil-Bolívia”.
VIDA SIMPLES Serra mantinha rotinadiscreta em SantiagoFalando da inflação Na mesma toada, o informe confidencial 325, de 22 junho de 1973, registra a presença de José Serra num fórum de debates sobre temas econômicos organizado pela revista “Chile Hoy”, órgão do Partido Comunista Chileno. Em pleno “milagre econômico”, o evento abria espaço para a discussão do “fenômeno inflacionário” brasileiro, listando suas causas e oferecendo medidas de solução para contê-lo. Além de Serra, participaram do fórum o ministro da Economia de Allende, Orlando Millas, e o economista brasileiro Theotônio dos Santos. Apesar da contribuição dos exilados brasileiros ao governo Allende, o sonho socialista acabou com o golpe do general Augusto Pinochet, em 11 de setembro.
À beira da morte Em meio à dura repressão que se abateu sobre a capital chilena, Serra ajudou a levar vários perseguidos à embaixada do Panamá. Mas foi preso no aeroporto, quando tentava deixar o país com a família. “Aqui dice que usted es um subversivo, un agitador y un intelectual muy vivo”, disse o policial que o deteve. Foi então levado para o Estádio Nacional, onde os militantes de esquerda eram executados sumariamente. O major que decidiu liberá-lo foi denunciado e acabou sendo fuzilado dias depois. Serra refugiou-se na embaixada da Itália e partiu para os Estados Unidos. Ao entrar em território americano, conseguiu finalmente se livrar dos agentes do Ciex. A última referência a seu nome é de um relatório secreto de outubro de 1973, ainda sobre o Chile, no qual, mesmo depois do golpe militar, é citado por suas relações com outros exilados. José Serra só voltou ao Brasil em 1978, após 14 anos de exílio.
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